Fabrício Corsaletti

Penúltimo poema sobre meus pais

1

desde que meus pais pediram
que não escreva mais
sobre eles

ando à procura de temas
que justifiquem

minhas lágrimas
meus desejos
meus remorsos

mas a metafísica me deprime
as questões sociais me ultrapassam
e meu amor só quer me ver feliz

2

vou descongelar meu amigo esquimó
e ver o que ele acha
vou comprar uma farrafa de rum
e beber com ele

(Esquimó, Cia.das letras/2010)

Lúcia Santos

haicais do livro “Uma gueixa pra Bashô”

§

em tua mão destra
meu violino só
vira orquestra

§

tua língua em meu ouvido
babel
onde tudo faz sentido

§

tarde de frio
um olhar sulista me veste
calor de nordeste

§

a cabeça de um homem
na bandeja
toda mulher deseja

§

amor servido à francesa
prazer?
só na sobremesa

§

gato sorrateiro
me deu um cheiro
roubou meu peixe e foi

§

gastei muita cera
pra lustrar teu assoalho
e me ver espelho

§

que merda
se for a morte
uma insônia eterna

Armando Freitas Filho

Hiato

Amor de mãe, amor de hérnia
que mesmo distante, mesmo morto
é herança que atravessa o intervalo
com seus tentáculos e tentativas
de aranha, tantalizante, e agarra, prende
por dentro: morrerá comigo, furioso.
Fiel tatuagem imune ao tempo de origem.

Em LAR,  Cia das Letras, 2009.

Ramon Mello

   Poema atravessado pelo Manifesto Sampler
para Frederico Coelho e Mauro Gaspar
I
 
invadir o corpo do mundo
aceitar
o
caos
atuar no esvaziamento das certezas
não copie e cole
se aproprie e recrie a realidade
use seu imaginário
carta de alforria para um primeiro
ato
nem todo início é um prólogo
II
 
acredite
você não é original
certo
apenas a pureza de um
mito
a pressão não
é
simples
pratique
sequestro saque captura
de palavras
não comunique aos pais
toda palavra é
órfã
não
existem palavras
finais
toda palavra
é
começo
pirata capitão buquineiro
promessa de geração
00
remix de ideias
souvenirs
alô waly
ah se você ainda estivesse por aqui
não escrever sobre
não descrever ou reproduzir
o mestre
produzir escrever produzir
eu
estou menino
em suas palavras
não chame meu nome em vão
salte a pedra
no caminho
III
seja atravessado pelos poetas que lê
aniquile as referências
um coletivo de enumerações
faça
literatura sem agradecer a raduan
ou adalgisa
faça
você seu retrato
enquanto jovem
encontre suas ideias
a partir de
apesar de
(lembra dela?)
apesar
de
invasor
ao combate
quais os limites
do texto?
autores originais
não mais
viva de uma forma política
crie assim
invada a cidade
invente
coloque tudo para dentro
para depois respirar
sentir e notar
você
eu estou colocando
pra dentro
o chocolate
de tanto olhar
ler
IV
propriedade coletiva
eu sou vocês
sou eu nos
reconhecemos nas palavras
lidas e não ditas e não lidas
também
percebe
posse‑criação
os
mentirosos
são dignos
do amor
deus
em latim é fingidor
da via
criação
escreva tudo
com essa mão nervosa
escreva escreva
as vozes que habitam
em ti
no papel
selvagem caótico
esse texto não é
seu nem meu
esse texto pertence
apenas
ataque
perigo ritmo
sem receio da autocrítica
se aproprie dos rótulos
para destruí‑los
plagiador sabotador
coroe sua intimidade
perturbe
seus pares
não os deixem
presos
no século passado
o aprendizado
as vanguardas e a tradição
modos de usar
sua língua
esqueça os ismos
a divisão didática
atravesse
seja tático
V
cale
a boca de quem
não se posiciona
no espaço
torne seu o que é
do outro
provoque todas
as encenações institucionais
modo de fazer
aprender fazendo
seu trabalho
diário
manipule a história
alheia escreva a nossa
invente
seja autor inventor
o leitor
deve reconhecer seus passos
caminho percorrido
está
tudo no passado
o futuro se tropeça
com ele
a poesia se esfrega nas coisas
percebe?
ao acordar veja as coisas
como
as coisas todas
espalhadas livros jornais
mesquinhez de sua relação
amorosa
você pode abrir sulcos na escrita
fluxos
corpo é texto
é corpo
emancipe sua escrita
deixem falar mal
amanhã
estão todos lambendo seu rabo
discuta apenas sua
existência
na palavra
leia
escreva
como quem atravessa
o leitor
subverta
transforme o meio com a palavra
transtextual
células trans
transexual
exu contemporâneo se aloja no outro
passado tomando o presente
de cavalo
 VI
 
ultrapasse
a si mesmo
amadureça
a experiência
seja através
dos outros
não trapaceie é fatal
a verdadeira história da literatura
uma história de ladrões
experiência
número infinito
o homem forte vive
lembre dos outros
entenda
as relações de força
você ouviu de um artista de plástico
vale tudo só não vale
qualquer
coisa
as coisas negras são
tão bonitas
menos o cavalo
beba
ice tea light
com limão e gelo
lipton com muita cafeína
no cafeína
não imite
escreva a partir
de
dobre a linha da folha
dobre‑se
você sabe que o papel
só pode ser dobrado
sete vezes
hum
modo de
de experimentar
os espaços
nascemos com os mortos
sempre
o fim é o meio
novo desvio
novidade sem novidade
caminho literário cercado de música
ouça
não é preciso citar
não é
faça
teses para corrompê‑las
o texto tem sentidos
não
sentido
fazer ao ler
a linguagem não indica sentido
mas possibilidades
as palavras
penetram em você
ou não
use todos os guardanapos
do café
com leite e biscoito de maisena
(compensando os 10% de mau atendimento)
ganhar força com as ideias
pense no tempo
em nosso tempo
tempo
tempo
tempo
tempo
silêncios
incorporados na escrita
esquecimento como aprendizado da escritura
invasão pela leitura
esse poema não tem
fim
é o meio
Poemas tirados de notícias de jornal (móbile, 2012)

Afonso Henriques Neto

Golpe de luz

a casa que não desenhei
a casa que não construí
arde em mim
pássaro absurdo

se voo ou durmo
seja luz ou surdo
nada importa para o corpo negro
a pedra brusca

a casa que não foi
contrói a minha busca

uma cerveja no dilúvio (7Letras, 2011)

Paulo Scott

pouco a dizer

quando o domingo é perfeito e você esquece de avisar os amigos
e os ingressos do cinema comprados com antecedência ficam esperando
e você pede desculpas quando sorri e recusa o chope de sempre
e levanta para chegar às pressas em casa (sem contar a bagunça)

essas roupas novas dizendo não é tarde e não importa o que aconteça
portas que viverão abertas entre parênteses para dissolver em água
a vontade de não mudar mais os lençóis (colecionando as manchas)
sessões de brigadeiro de colher com os dvds que já não funcionam

nos dedos o que lá fora e esse vaso: dias que passaram sem você

Raphael Gancz

O beco

O beco é a boca da rua. Tem fome. De sarna. De sangue. De sujo.
É um poço lateral. Uma escada que desce, sempre, em espiral.
É um porão na superfície. O submundo sobre o mundo.
O beco é um albergue. Conforta. Afaga. Afoga. Mágoas. Mendigos. E ratos.
É um abrigo. Que abriga. Quem passa. Pela porta. Que abre. No meio. Da perseguição. E salva.
Vem, é por aqui.
O beco não esconde.
Revela.
Sob tortura.
Respostas.
Cuspidas.
Tomadas.
À força.
A socos.
De gancho.
Na barriga.
O beco é um baque.
É úmido. E faz engolir seco. É amplo. Uma passagem-paisagem. Surge por trás, encoxando prédios e confortando estupros.
É uma vala rasa. Uma corda bamba. Que imobiliza.
E depois derruba.
O beco é o bico. Do beijo. Que baba. Na barba.
É a brecha. A ponte. O barco. A ilha, cercada de poças por todos os lados.
O beco faz eco.
No grito. Do louco. Que fala sozinho, bate com a cabeça e geme de certeza.
O beco é, sim, a saída.

Gabriel Pardal

Carta de amor enviada num canhão

Eu botei uma praga em você
Fiz magia
Fui na bruxa
Fiz caveira
Simpatia
Deixei despacho na rua
Que é pra você se arrebentar toda
Espero que você exploda
Que seu corpo inche
Risque estrias
Seu cabelo queime
Seus olhos sequem
E seu umbigo desmanche
Quero ver você sofrendo
Chorando uma tempestade
Parindo um elefante
Vomitando um edifício
Encharcando a enfermaria
Quero que seu coração imploda
Eu quero que você vire uma hemorragia
Que não saiba se encontrar
Que beba o veneno
Encontre a bomba
Suma, desapareça
Teu nome está no buraco do mundo
Tua foto queimei no sapo
Teus presentes enterrei no saco
Eu quero que você se apague
Se enforque nos lençóis
Que o mal te esfrie
Que assaltem teu ouro
Que tua casa pegue fogo
Teus parentes mortos
Teus amigos te traiam
E um negão desmarcado trepe contigo
E você não possa mais andar
Que perca dinheiro
Que não consiga mais emprego
Que as pessoas te xinguem ao passar
Que o piano caia na sua cabeça
Pise na merda
Escorregue na banana
Perca o sono
Seja rejeitada, cuspida, escarrada
Que lhe falte abraços
Que lhe falte beijos
Que conheça o nada
Eu botei uma praga em você
Que é pra depois, assim…
Você volte em passos lentos pelo jardim
Suplicando pra voltar pra mim
Não há nada
Como amar
Uma mulher
Toda arrebentada.

Carlito Azevedo

Uma tentativa de retratá-la

Num dancing é mais difícil
pela chuva de ouro nos cabelos,
e a viagem circular absoluta pela
pista. Mas o século 21 preservou
ainda as bibliotecas, sistema de
sistemas que nos permite pressupor
que em sua bolsa convivam,
como dois faunos se encarando,
Lancôme e La Celestina.
Mas bibliotecas são também
esforços infinitos, fluxos imparáveis,
luminescentes, olhos em
ziguezague, vibração de mãos
pousando em páginas antigas,
com mandíbulas de bolor, e
todos os relâmpagos que há nisso.
Um derradeiro “motivo” seria o da
Jovem Em Um Carro Veloz
Falando Ao Celular; clausura
móvel onde soletrar palavras de
amor e perder tudo, manipular
as intermitências do desejo (e
perder tudo), imolar violetas
retardatárias. O planeta também
imola seus retardatários. Entre
operários na calçada, no frio,
aguardando a sirene da mudança
de turno? Talvez, talvez. De
certo modo ela se parece cada
vez mais com o que escreveu
o seu poeta favorito:
“Piccolo, sempre piú piccolo.
Pigmeo, sempre piú pigmeo.”
Por isso nem dancings, nem
bibliotecas nos bastam. Nem
a balada do automóvel insone.
Isso, e nem a cama alta onde
agora, contudo, sorri
esse shakespeariano animal
que logo existe.

Monodrama (7Letras/2009)

Ronald Augusto

Voz feirante

III

quando negro dá risada
é que nem uma cigarra soltando
o verão brasileiro

mas se aparece relâmpago
é que negro ficou
com raiva raiva

e fez da vida dele
um poema puto da cara
uma cachoeira complicada

uma arma de ponta
um carecimento de
brincar no aroma dos tambores