Carla Diacov

horas bolas

o menino ganha uma bola
e não sabe o que fez para ganhar
tamanho mistério
em seus 15 meses de vida nunca viu
tamanho exemplo
nos desafiamos como nos amamos tudo
junto empilhado alternando o cume
a menina desvenda a bola
por isso ganha um vestido de bolas
em seus 39 meses a menina caberá no vestido
em seus 93 meses recortará as bolas
em seus 203 meses vai fazer do vestido uma bolsa
onde tudo tudo tudo cai bem com gás de pimenta
o menino repetirá para o resto da vida
NINGUÉM ME DÁ BOLA
o menino repetirá tamanho exemplo

Júlia Carvalho Hansen

Posso

Posso te esperar a tarde inteira
atravessar você — o precipício
ou te chamar de Canyon
e colocar uns pássaros voando nele.

Posso te mostrar a parte de dentro
das coisas, da carne — posso me rechear
inteira de cuidados, lanças e perfumes
e desmontar à tarde todas as coisas.

Posso inventar-nos um desfecho
te chamar de ilha, charco, travessia
esquecer eu não posso — posso
dizer que eu irei me lembrar.

Posso perguntar pelo tempo
e assim conversaremos sobre o breu
normativo & inconstitucional desses dias
e de como não seremos derrotados.

Um pelo outro, talvez, não.

Nathalie Quintane

Charly + le choeur des enfants
Carlito + o coro das crianças

(type choeur antique rappé)

(tipo coro antigo em forma de rap)


CHARLY

CARLITO

Les enfants, j’ai du boulot, je pars pour quelques mois.
Crianças, achei um trampo, fico fora uns meses.

CHOEUR
CORO

Oh mais père
Ah mas pai

tu ne seras donc pas là
você não vai estar na área

la langue de la loi ne pénétrera pas notre enregistrement
a língua da lei não vai penetrar nossos mandamentos

nous ne respecterons plus les réglements
não respeitaremos mais regulamentos

c’est la perte des repères à perpet’
é a perda perpétua de parâmetros

nous aurons des zéros

vamos tirar muito zero

nous irons en retenue

vamos ficar de suspensão

nous passerons des sanctions

iremos da advertência

pédagogiques
pedagógica

en sanctions disciplinaires

à advertência disciplinar

nous irons en conseil
nos mandarão pra direção

nous larderons un camarade de coups de couteau

encheremos um colega de furos de faca

en haut d’un patio
um qualquer panaca

nous importerons des singes magots

traremos bichos feios paca

et des clébards interdits
e cachorros proibidos

nous ferons preuve de désinvolture

daremos prova de desenvoltura

nous ne deviendrons pas citoyens mais rien
não vamos ficar bonitos na foto

et au lieu de glisser dans l’urne notre bulletin
e ao invés de depositar na urna nosso voto

nous attaquerons des supermarchés
atacaremos os supermercados

nous dealerons en bas des marches
e andaremos só com drogados

nous instaurerons des zones de non-droit

criaremos zonas onde tudo se pode

nous y défierons les forces de l’ordre

pra desafiar as forças da ordem

et les représentants de la République
e os representantes da República

nous apprendrons l’arabe littéraire

aprenderemos o árabe literário

nous irons nous entraîner

e nosso itinerário

en Afghanistan au Pakistan

será o Afeganistão ou o Paquistão

en Azerbaïdjan dans le Balouchistan
o Azerbaijão e o Baluchistão

nous ferons des gestes vulgaires
faremos gestos indecorosos

aux éducateurs prioritaires
aos educadores rancorosos

nous aurons comme seul objectif
só teremos por objetivo

de rouler en BX
rodar num carro esportivo

nous irons dans des salles multiplexes

só iremos aos cinemas de shopping

nous saurons des sports de combat
aprenderemos esportes de combate

nous serons multirécidivistes
seremos réus reincidentes

nous aurons une respiration abdominale

nossa respiração será a abdominal

et un sexualité anale
e nossa sexualidade a anal

le théâtre ni la danse ne permettront

nem o teatro nem a dança poderão

de nous réinsérer
nos reeducar

nous ne serons pas anarchistes
não seremos anarquistas

nous ne admirerons pas les situationnistes
não admiraremos os situacionistas

(tradução de Adalberto Müller)

Júlia Vita

uma alga viva:

alguém mete as mãos
e ela foge

ou ela gruda
e sentem
nojo

como alga viva, mãe?
primeiro desista da palavra
força

logo depois da resistência.

um corpo resistente
é destruído fácil
por quebradiço.

logo depois exercita o drible:
algo esbarra, se desvia

ou abre buraco
para que passe

seja peixe porém
não morda
isca.

 

Júlia Vita é poeta e artista nascida em Niterói, a cidade onde atualmente reside. Em suas práticas atuais estão “Trabalho doméstico” – processo performativo constante- e o “pesca.nºEu”, projeto poético de palavras políticas em montagem, discurso de mídia e identidades. Possui poesias publicadas na revista mexicanaLa Crítica e manuscritos no Poema do Poeta. Um grande escopo pode ser lido em seu blog Versoando e em seu próprio Facebook, onde dispara escrituras e outros gestos artísticos que encontram potência de contexto.

Max Martins

Amargo

Há um mar, o dos velames,
das praias ardendo em ouro.

Há outro mar, o mar noturno,
o das marés com a lua
a boiar no fundo
o mênstruo da madrugada.

E final o outro, o do amor amargo,
meu mar particular, o mais profundo,
com recifes sangrando, um mar sedento
e apunhalado.

 

(Anti-retrato, Gráfica Falangola Editora, 1960)

Antonio Moura

NUM LIVRO DE SAN JÜAN DE LA CRUZ

 

Entre as páginas de um livro de

San Juan de La Cruz deparo

 

Com a vida entrelaçada à morte ao

acaso, entre a vida que ali floresce

 

em palavras, voz humana que

no deserto em branco se propaga,

 

o corpo morto de um inseto entre

as páginas fala do que pode estar

 

sendo e — num relâmpago — ter sido,

fogo abafado pela mão desconhecida

 

que, subitamente, fecha o livro

 

(ANTOLOGÍA DE POESÍA BRASILEÑA, edición de Jaime B. Rosa. Organización Floriano Martins y José Geraldo Neres.  Muestra gráfica y portada Hélio Rôla. Edición bilingüe  Português – Español.)

Regina Azevedo

Amor planeta piração

olho pra você e penso em água corrente
penso em piano
penso que seu sorriso se abre
como um guarda-chuva estampado
penso que deitar com você no chão
se assemelha a deitar numa nuvem
penso em suor, penso em música
penso se você respira
penso no seu cabelo rosa
penso em coisas que se guardam no bolso
penso na estratégia da surpresa
penso em você de bermuda e batom
penso na matéria se dissipando
na intimidade crescendo silenciosa
no espaço entre nossas almas

penso que não precisamos dar nome
ao que sentimos
ao que não sabemos

você olha pra mim e pensa
em girassois e em amarelo
você pensa em pescoço
você pensa em fogo
você pensa em palavra
você pensa estou tão chapado que estou delirando
você pensa eu te reconheço de olho fechado
você pensa na palavra coragem
tatuada debaixo do peito
você pensa em rock
você pensa que pareço uma francesinha
você pensa que pode confiar
na força da dor
e no nosso cheiro
único
misturado e inabalável

o que você não sabe
é que te amo também quando você está longe
e quando você ama
e quando você pensa
e te amo enquanto você dorme

e penso no quanto é impossível calcular
o quanto nós somos bonitos
pensando no amor
e acreditando
de vez em quando
enquanto a gente dança
enquanto a gente chora
e enquanto a gente tenta
atravessar o limite da pele

e dizer amor
como quem diz festa

 

(“Pirueta”, Jovens escribas/Selo do burro, 2017)

Duda Machado

Imitação das coisas

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos mas concentrados
— como no amor —, decididos
a alcançá-las, embora adivinhando
e já pouco importa que ainda
não estamos preparados.

Carlos Drummond de Andrade

O elefante

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.
(A Rosa do Povo)

Adília Lopes

Arte poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

(Um jogo bastante perigoso. Edição da autora, 1985)