Diego Grando

Dégradé

Como disfarce no dedo
a tragada no cigarro
amarela o medo
e agrisalhando com fumaça
o azul dos corredores
do respiratório aparelho
monoxida nas artérias
a transparente monotonia
dos glóbulos vermelhos.

(Sétima do singular, Não editora/2012)

Zeca Baleiro

Babylon

baby i’m so alone
vamos pra babylon
viver a pão-de-ló e moët chandon
vamos pra babylon
gozar sem se preocupar com amanhã
vamos pra babylon

comprar o que houver
au revoir ralé
finesse s’il vou plait mon dieu je t’aime glamour
manhattan by night
passear de iate
nos mares do pacífico sul

baby i’m alive like a rolling stone
vamos pra babylon
vida é um souvenir made in hong kong
vamos pra babylon
vem ser feliz ao lado deste bon vivant
vamos pra babylon

de tudo provar
champanhe caviar
scoth escargot raybant bye miserê
kaya now to me
o céu seja aqui
minha religião é o prazer

não tenho dinheiro pra pagar a minha ioga
não tenho dinheiro pra bancar a minha droga
eu não tenho renda pra descolar a merenda
cansei de ser duro vou botar minh’alma à venda

eu não tenho grana pra sair com o meu broto
eu não compro roupa por isso que eu ando roto
nada vem de graça nem pão nem a cachaça
quero ser o caçador ando cansado de ser caça

(Vida é um souvenir made in Hong Kong, ed. UFG/2010)

Ademir Assunção

Velho oeste

os muros da cidade caíram, pilhas
de corpos aguardam as chamas
dos fornos funerários, não há sons
de clarins, nem vento.

somente a brisa tremulando cabelos
que ainda crescem

e a mulher em estado de choque
que aperta o laço da corda
em torno do pescoço do próprio marido

ciente de que as tropas do general custer
não chegarão a tempo

(A voz do ventríloquo, Edith/2012)

Ana Martins Marques

Bilhete

 

Eu deixei um bilhete sobre a mesa para quando você acordar.
Eu tive que sair muito cedo e não sabia exatamente que palavras deixar. Eu queria te dizer várias coisas sobre a noite, coisas que começariam com palavras claras e doces, mas ligeiramente ácidas, e depois um pequeno segredo e uma declaração firme e discreta e por fim uma frase que seria fria por fora e quente por dentro como uma sobremesa francesa.
Mas foi tão difícil, o sol batia de leve sobre a mesa, você dormia tão próximo e eu ainda não tinha calçado os sapatos, o que certamente interferiu um pouco na minha caligrafia.
Seu apartamento de manhã ainda decorado com os restos da noite. Eu não sabia o que dizer, e se a única caneta que encontrei era vermelha você pode supor meu sobressalto e
então eu apenas escrevi
É tão tarde, mas
eu estou pronta
se você estiver
e desenhei sem cuidado no canto esquerdo do papel
um pequeno veleiro.

(A vida submarina, ed. Scriptum, 2009)

Marcelino Freire

Fogo na brasa

Um dia esse povo
deixará de ser
pneu e carvão

Não mais será
palha e papelão

Um dia esse povo
cansará de ser
jornal e plástico

Deixará de ser tábua
sem salvação

Um dia esse povo
não virará cinza
nem cinzeiro

Nenhum cheiro no ar
de fósforo e fumaça

Não deixará de graça
a sua morada

Não precisará
de bombeiro

Negará a ajuda
do governo

Um dia esse povo
queimará
o tempo inteiro

Ninguém o apagará
do mapa

Um dia esse povo
será fogo na brasa

(Blog do escritor: Ossos do ofídio)

Angélica Freitas

uma canção popular (séc. XIX-XX)

uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam

loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas

são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes

interna, enterra

(um útero é do tamanho de um punho, cosac naify, 2012)