Carlos Drummond de Andrade

Amar-amaro

porque amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?

ah PORQUE AMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indignação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja

permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras.

(Lição de coisas, 1979)

Arnaldo Antunes

que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?

que preto branco índio o quê?
branco índio preto o quê?
índio preto branco o quê?

aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos mamelucos sararás
crilouros guaranisseis e judárabes

orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs

somos o que somos
inclassificáveis

não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,

não há sol a sós

aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos tapuias tupinamboclos
americarataís yorubárbaros.

somos o que somos
inclassificáveis

que preto, que branco, que índio o quê?
que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?

não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não tem cor, tem cores,

não há sol a sós

egipciganos tupinamboclos
yorubárbaros carataís
caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés
chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol

(“Inclassificáveis”. Letra de canção. In CD O silêncio. Gravadora BMG, 1996)

Arnaldo Antunes

Porque eu te olhava e você era o meu cinema, a minha Scarlet O’ Hara, a minha Excalibur, a minha Salambô, a minha Nastassia Filípovna, a minha Brigitte Bardot, o meu Tadzio, a minha Anne, a minha Lorraine, a minha Ceci, a minha Odete Grecy, a minha Capitu, a minha Cabocla, a minha Pagu, a minha Barbarella, a minha Honey Moon, o meu amuleto de Ogum, a minha Honey Baby, a minha Rosemary, a minha Merlin Monroe, o meu Rodolfo Valentino, a minha Emanuelle, o meu Bambi, a minha Lília Brick, a minha Poliana, a minha Gilda, a minha Julieta, e eu dizia a você do meu amor e você ria, suspirava e ria.

(“Psia”. Como é que chama o nome disso, Publifolha, 2006)

William Butler Yeats

Viajando para Bizâncio

Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.

Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final,
a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hábito mortal;
nem há escola de canto, ali, que não estude
monumentos de sua própria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância,
em busca da cidade santa de Bizâncio.

Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser .
Rompei meu coração, que a febre faz doente
e, acorrentado a um mísero animal morrente,
já não sabe o que é; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.

Livre da natureza não hei de assumir
conformação de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas,
pousado em ramo de ouro, como um pássa-
ro, o que passou e passará e sempre passa.

(Linguaviagem, Cia das Letras,  Poesia da Recusa, Perspectiva, trad. Augusto de Campos)

Dante Alighieri

No meio do caminho desta vida
desencontrei-me numa selva escura
que do rumo direito vi perdida.

Ah, quanto o descrevê-la é empresa dura,
esta selva selvagem, acre e forte
e que o pavor no pensamento apura!

Tal amargor, só há maior na morte.
Mas quanto ao Bem que ali eu encontrei,
outras coisas direi de minha sorte.

Não posso relembrar bem como entrei,
tão sonolento estava, àquele ponto
em que a via veraz abandonei.

Depois, ao pé de uma colina, pronto
surgida onde findava o vale aberto
que o medo ao coração trouxe em confronto,

olhei-a no alto e vi seus ombros, perto,
vestidos já dos raios, luz completa,
do planeta que aponta o rumo certo.

Calmou-se o medo desta noite inquieta
que o lago-coração, quase em trespasse,
guardava e que eu passei, de horror repleta.

E como o que sem fôlego escapasse
do mar à praia e em hora pungitiva
à onda perigosa ainda encarasse,

assim minh’alma, que ia fugitiva,
voltou-se pra trás, olhando o espaço
de onde jamais voltou pessoa viva.

 

(A Divina Comédia, Inferno. trad. Jorge Wanderley)

Paul Valéry

O cemitério marinho
Teto tranqüilo em que caminham pombas,
palpitação entre o pinhal e as tumbas,
ó mar recomeçado tanta vezes!
O meio-dia afina um fogo lento
e, recompensa após um pensamento,
o olhar se alonga sobre a paz dos deuses.Um tear de relâmpagos consuma
diamantes rapidíssimos de espuma
e uma vasta quietude sela o abismo;
da causa eterna a pura tradução,
cintila o tempo e o sonho ascende então
a uma sabedoria de algarismo.

Firme tesouro, ó templo que a Minerva
ergues massas de calma e de reserva,
água inquieta e Olho cintilante,
cortinado de chamas sobre o sono,
ó meu silêncio!… Edifício sem dono,
Cumeeira de ouro, Teto arfante!

Templo do Tempo, inteiro num suspiro!
Tão alto subo sobre o que admiro
que meu olhar marinho é pouco humano:
um vasto sacrifício sobre a lousa,
tudo quanto cintila ascende e pousa
sobre a altitude um desdém soberano.

Como o fruto transmuda em gosto a polpa
e a delícia em ausência numa boca,
morre a forma e mal dura o seu sabor.
Aqui sorvo o devir que sou, fumaça,
enquanto canta o céu à alma que passa
transfigurando as margens em rumor.

Ó belo, ó verdadeiro céu, aos poucos
vou mudando: do orgulho que há nos ocos
de uma indolência cheia de poder,
vou-me entregando ao teu brilhante espaço,
sobre a mansão dos mortos pairo e passo,
a sombra fragilíssima do ser.

E, a alma exposta às tochas do solstício,
sustenho-te o admirável edifício,
ó justiça da luz, cruel espada.
Reconheço a pureza que te cabe,
olha-a! Só que louvar tão claro sabre
supõe da sombra uma porção calada.

Só para mim, comigo apenas, perto
das fontes do poema, oscilo incerto
entre o vazio e o vir-a-ser mais puro;
aguardo os ecos da grandeza interna,
sombria, amarga e sonora cisterna,
o oco dentro da alma, ainda futuro.

Falso cativo das folhagens, mar
que róis ferralhas, entre o meu olhar
e a pálpebra uma brasa me procura;
vem falar de ossuários, vem da cinza
essa fagulha viva, e não precisa
dizer mais: são meus mortos que murmuram.

Sacro, onde um fogo-fátuo em fragmentos
ergue à luz seus terrenos ligamentos,
gosto deste lugar: archotes fulcros
de pedra e ouro sob tantas árvores,
tantas sombras dormindo sob os mármores,
e tu, mar, cão fiel junto aos sepulcros.

Cão esplêndido, espanta a idolatria!
Onde o zagal sozinho passa o dia
a apascentar seus mortos, seus cediços
carneirinhos de mármore em teus flancos,
afugenta essas pombas, esses brancos,
altos sonhos, e os anjos metediços.

Aqui até o futuro se espreguiça.
O inseto raspa a nítida caliça
e tudo arde e some no infinito
rumo à severa incógnita da essência…
Vasta é a vida bêbeda de ausência,
doce a amargura e límpido o espírito.

A morte disfarçada em cemitério
aquece e oculta os mortos e o mistério,
enquanto um sol no alto azul em fuga
pensa-se e se convém em pensamento.
Cabeça exata de um coroamento,
sou eu o vinco em tua testa, a ruga,

só tens a mim para conter-te o medo,
dúvidas e remorsos a que cedo
põem a falha em teu plácido diamante…
E eis que, noturno, um povo sob os mármores,
rente às raízes úmidas das árvores
associa-se a ti, inquietante;

ele é feito da ausência mais espessa,
a argila escureceu cada cabeça,
o dom da vida foi passando às flores…
Onde agora expressões familiares,
artes íntimas, almas singulares?
A larva fia onde escorriam dores…

E o gritinho feliz das raparigas,
os olhos sob as pálpebras amigas,
os seios brancos a brincar com o fogo,
o sangue entre os beicinhos de uma dádiva,
o último dom lutando com a mão ávida,
tudo vai sob a terra e entra no jogo.

E tu, minh’alma? Esperas algum dia
um sonho mais real que a fantasia
que onda e ouro colorem por aqui?
Cantarás quando fores só vapor?
Ou vês que tudo foge, que aonde for
vai morrendo a impaciência que há em ti?

Magra imortalidade do ouropel
na escuridão, horrível teu laurel
quer da morte fazer seio materno.
Piedosíssimo ardil, bela mentira!
Quem não recusa o crânio quando expira
o que sorria, quem não teme o eterno?

Arcanos pais, cabeças no regaço
da terra a que sustendes todo o abraço,
confundis nosso passo! O roedor,
o verme irrefutável não é vosso,
vós dormis: ele é meu, vive em meus ossos,
não me deixa dormir de tanto amor!

Seria amor ou ódio? Só é certo
que seu dente fatal anda tão perto
que qualquer nome lhe convém, que importa!
Minha carne lhe agrada, em minha cama
sou dele porque vivo e ele me ama
e vê e quer e vem tocar-me à porta!

Zenão, cruel Zenão, Zenão de Eléia,
tu me feriste com o harpão da Idéia,
esse vôo hipotético no ar:
ardo em música e o dardo me atravessa,
solar, a tartaruga não tem pressa
e Aquiles corre sem ultrapassar…

Não! Não! De pé! Nas eras sucessivas
rompe as formas, meu corpo, e que enfim vivas!
Bebe, ó meu peito, de onde o vento nasce!
Um frescor vem do largo a devolver-me
a alma, o sal, a força… Cala, ó verme!
Espatifa-te, ó onda, em minha face!

Tùnica salpicada de buracos,
mar, pele de pantera sob os cacos
de milhares de ídolos do sol,
carne total e ébria, hidra turquesa
mordendo a própria cauda, ó correnteza
em tumulto e ao silêncio em tudo igual,

ergue-se o vento! À vida! À vida! À vida!
Lufadas viram a página mal lida,
voltam das pedras jorros magníficos,
voa, meu belo livro! E, onda a onda,
estilhaça-te, ó cúpula redonda
em que as focas da luz afiam os bicos!

(versão de Bruno Tolentino, O mundo como ideia, Globo, 2002)

Waly Salomão

Minha alegria

Minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de incêndio.

(Algaravias. Rocco, 2007)

Eugénio de Andrade

O sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

(O outro nome da Terra. Porto: Limiar, 1989)