Antonio Moura

NUM LIVRO DE SAN JÜAN DE LA CRUZ

 

Entre as páginas de um livro de

San Juan de La Cruz deparo

 

Com a vida entrelaçada à morte ao

acaso, entre a vida que ali floresce

 

em palavras, voz humana que

no deserto em branco se propaga,

 

o corpo morto de um inseto entre

as páginas fala do que pode estar

 

sendo e — num relâmpago — ter sido,

fogo abafado pela mão desconhecida

 

que, subitamente, fecha o livro

 

(ANTOLOGÍA DE POESÍA BRASILEÑA, edición de Jaime B. Rosa. Organización Floriano Martins y José Geraldo Neres.  Muestra gráfica y portada Hélio Rôla. Edición bilingüe  Português – Español.)

Regina Azevedo

Amor planeta piração

olho pra você e penso em água corrente
penso em piano
penso que seu sorriso se abre
como um guarda-chuva estampado
penso que deitar com você no chão
se assemelha a deitar numa nuvem
penso em suor, penso em música
penso se você respira
penso no seu cabelo rosa
penso em coisas que se guardam no bolso
penso na estratégia da surpresa
penso em você de bermuda e batom
penso na matéria se dissipando
na intimidade crescendo silenciosa
no espaço entre nossas almas

penso que não precisamos dar nome
ao que sentimos
ao que não sabemos

você olha pra mim e pensa
em girassois e em amarelo
você pensa em pescoço
você pensa em fogo
você pensa em palavra
você pensa estou tão chapado que estou delirando
você pensa eu te reconheço de olho fechado
você pensa na palavra coragem
tatuada debaixo do peito
você pensa em rock
você pensa que pareço uma francesinha
você pensa que pode confiar
na força da dor
e no nosso cheiro
único
misturado e inabalável

o que você não sabe
é que te amo também quando você está longe
e quando você ama
e quando você pensa
e te amo enquanto você dorme

e penso no quanto é impossível calcular
o quanto nós somos bonitos
pensando no amor
e acreditando
de vez em quando
enquanto a gente dança
enquanto a gente chora
e enquanto a gente tenta
atravessar o limite da pele

e dizer amor
como quem diz festa

 

(“Pirueta”, Jovens escribas/Selo do burro, 2017)

Duda Machado

Imitação das coisas

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos mas concentrados
— como no amor —, decididos
a alcançá-las, embora adivinhando
e já pouco importa que ainda
não estamos preparados.

Carlos Drummond de Andrade

O elefante

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.
(A Rosa do Povo)

Adília Lopes

Arte poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

(Um jogo bastante perigoso. Edição da autora, 1985)