Omar Salomão

À deriva

Em pleno alto mar
Perco-me de vista

Velas hasteadas,
Mapa, bússola, astrolábio e radar
Aguardo por alísios ventos
Que me levem para longe
Que me ponham a navegar

Saio à caça de algo
Um arpão vara o céu
Em meio ao nevoeiro
Não encontro garrafas, barcos ou camaradas

Deitado na rede
Uma voz grave me sussurra histórias de Iemanjá

Miro o céu sem estrelas
E peço por alguém que me dê
um sopro de ar.

(À deriva/Dantes, 2005)

Deisi Beier

há certa gravidade nessas noites úmidas
a vida e sua mão de ferro queimando sobre a ferida

minha manhã sempre guarda um canto escuro

nesse beijo, um certo estremecimento
e o gosto do medo
nem anjos, por não compreenderem a língua,
pousam nas extremidades da boca
que se despega do gesto

(Breu rendado, Movimento/2012)

Alice Sant’Anna

domingo nublado

alguma coisa grita
nesse quarto que boia
em outro oceano: meu caderninho azul
já chega ao fim (nunca
terminei um tão rápido
as páginas coloridas
com frases para mim
mesma). essa gente não entende
pra que servem os domingos
nublados — lá em casa
as janelas ficam abertas
para deixar o cinza à vontade
meu pai diz pode colocar
à mesa, eu dobro guardanapos
mamãe espalha pratos, marina
escolhe talheres, a tv murmura
baixinho: o almoço chega da cozinha
numa panela muito quente
e a grande surpresa ao levantar
a tampa — as tardes de domingo
são pequenas joias

Sandro Só (Sandro Ornellas)

carteira de identidade

esta cidade não me salva
nasci fora de suas fronteiras
pai e mãe são meu medo
dupla a derrota
tatuada em meu corpo
como cicatriz da história

esta cidade não me basta
sou bastardo em sua memória
tenho um não-lugar além
sou estranho a toda estória
irredutível ao que se exprime
em seu fado em suas horas

esta cidade arde a aurora
que carrego entre as pernas
– meu pau de pé –
uma origem tão cinzenta
quanto um amor tangente
ao ódio – amor angelicaos

esta cidade não me acalma
sua língua trava minha boca
sua luz queima meus olhos
mas salto seus muros
com o roteiro de desencontros
que definem meu destino

(Formas de cair & outros poemas, 2007-2010, Letra Capital, 2011)

Maira Parula

Como se pode viver com alguém sem criar expectativa nenhuma?
Como um zumbi talvez. Com um zumbi também.
Eu confundo um pouco os fatos.
Quem se aproxima de zumbis acaba se transformando em um.
Basta esperar o tempo passar. Não precisa muito.
Uma ponta da noite e você vai ver. O iceberg inteiro.
Ao nascer do sol verá que percorreu quarenta milhas a hora
e ainda acha que foi ontem. Está no mesmo lugar e longe.
Morto à beira de um lago, uma banheira, que julgou ser o mar.
Uma citação não favorece a poesia. A poesia não favorece o corpo.
O corpo quer engolir outro corpo, pela linha que passa de polo a polo.
O amor, seu capote de lã.
E você cometerá outra vez e outra vez.
Quantas forem necessárias e se ainda houver água na cisterna.
Enquanto seu olhar for de si mesmo, o que é sinal seguro de terra.
A vida não cobra nada para repetir o mesmo ato. O sim e o não.
Uma pequena risada no café da manhã.
As glândulas independentes da vontade.
Escravo da contração dos músculos.
Mas seus cães ainda estão ali,
esperando pelo seu carinho do outro lado da janela.
E nesta hora você não pensará nos babuínos.

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Paulo Henriques Britto

Horácio no Baixo
(Odes I, 11)

Tentar prever o que o futuro te reserva
não leva a nada. Mãe de santo, mapa astral
e livro de autoajuda é tudo a mesma merda.
O melhor é aceitar o que de bom ou mau
acontecer. O verão que agora inicia
pode ser só mais um, ou pode ser o último –
vá saber. Toma o teu chope, aproveita o dia,
e quanto ao amanhã, o que vier é lucro.

(Formas do nada, cia. das letras/2012)