Cazuza

Que o Deus venha

Sou inquieto, áspero
E desesperançado
Embora amor dentro de mim eu tenha
Só que eu não sei usar amor
Às vezes arranha
Feito farpa

Se tanto amor dentro de mim
Eu tenho, mas no entanto
Continuo inquieto
É que eu preciso que o Deus venha
Antes que seja tarde demais

Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É o inesperado

Mas eu sei
Que vou ter paz antes da morte
Que vou experimentar um dia
O delicado da vida
Vou aprender
Como se come e vive
O gosto da comida
(Clarice Lispector, Cazuza e Frejat)

 

Angélica Freitas

o que passou pela cabeça do violinista

em que a morte acentuou a palidez ao

despenhar-se com sua cabeleira negra &

seu stradivárius no grande desastre

aéreo de ontem

mi

eu penso em béla bartók

eu penso em rita lee

eu penso no stradivárius

e nos vários empregos

que tive

pra chegar aqui

e agora a turbina falha

e agora a cabine se parte em duas

e agora as tralhas todas caem dos compartimentos

e eu despenco junto

lindo e pálido minha cabeleira negra

meu violino contra o peito

o sujeito ali da frente reza

eu só penso

mi

eu penso em stravinski

e nas barbas do klaus kinski

e no nariz do karabtchevsky

e num poema do joseph brodsky

que uma vez eu li

senhoras intactas, afrouxem os cintos

que o chão é lindo & já vem vindo

one

two

three

(Rilke Shake, ed. 7Letras/CosacNaify)

Anacreonte

Ode XXIV

Pois que mortal, homem, nasci,
O caminho da vida transporei.
Só sei do tempo em que vivi,
Do que falta correr, eu nada sei…
Deixai-me, pois, tetros cuidados!
Vindo de vós, nada me afeta:
Jamais a vós me renderei
Nem me fareis triste nem fraco.
Antes que eu chegue à grande meta,
Rirei brincando e dançarei
Aos pés do belo e moço Baco!

(Anacreonte,  Odes de Anacreonte. Tradução de Almeida Cousin)

Federico Garcia Lorca

Este é o prólogo

Deixaria neste livro
toda a minha alma.
este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.

Que pena dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam!

Que tristeza tão funda
é olhar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta!

Ver passar os espectros
de vida que se apagam,
ver o homem desnudo
em Pégaso sem asas,

ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se olham e se abraçam.

Um livro de poesias
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,

e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes incute nos peitos
– entranháveis distâncias.

O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchas
de chorar o que ama.

O poeta é o médium
da Natureza
que explica sua grandeza
por meio de palavras.

O poeta compreende
todo o incompreensível
e as coisas que se odeiam,
ele, amigas as chama.

Sabe que as veredas
são todas impossíveis,
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Nos livros de versos,
entre rosas de sangue,
vão passando as tristes
e eternas caravanas

que fizeram ao poeta
quando chora nas tardes,
rodeado e cingido
por seus próprios fantasmas.

Poesia é amargura,
mel celeste que mana
de um favo invisível
que as almas fabricam.

Poesia é o impossível
feito possível. Harpa
que tem em vez de cordas
corações e chamas.

Poesia é a vida
que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva
sem rumo a nossa barca.

Livros doces de versos
sãos os astros que passam
pelo silêncio mudo
para o reino do Nada,
escrevendo no céu
suas estrofes de prata.

Oh! que penas tão fundas
e nunca remediadas,
as vozes dolorosas
que os poetas cantam!

Deixaria neste livro
toda a minha alma…

(“Este é o prólogo”. Trad. William Agel de Melo.  Obra poética completa. Ed. Universidade de Brasília, 1989)

Luís de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem – se algum houve – as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

(Luís de Camões, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” – Sonetos. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1980)